Tudo parecia perfeitamente normal naquele ambiente, cada um cumprindo a contento sua função. Tudo e todos. Exceto a Caneta. Parada sobre o Papel, imóvel, lá estava a caneta. Notória escritora, conhecida pela determinação com que começava uma história e não parava até tê-la terminado, era agora um suntuoso enfeite, empoleirada ereta sobre o Papel, a tinta plenamente disposta em sua ponta, porém sem nada produzir.
Mas é claro que a culpa não era da Caneta. Poucos sabiam, e mesmo estes fingiam não saber, mas a Caneta não tinha nada de genial. Era só um peão, trabalhando freneticamente na mão de um ser hierarquicamente mais importante. Literalmente.
Naquele instante, guiando a caneta, havia a Mão. Imponente, elegante, segurando a Caneta com maestria. Preparando-se para outro feito majestoso. Mas a Mão não era tão bem vista quanto a Caneta. Não, nunca lhe era dados créditos , mesmo os errôneos, tais como os endereçados a Caneta. A Mão era apenas mão de obra. Era um operário das grandes artes. Ela apenas seguia as ordens que a Imaginação lhe passava. Ou seguiria, caso houvessem ordens a seguir.
Mas aquela não era uma noite imaginativa para a Imaginação. Ela até esforçava-se, tentando sorver inspiração do mundinho onde agora estava. Mas nada parecia ocorrer-lher. Nenhuma ideia genial, Nem mesmo uma ideia simples que fosse. Não lhe vinha nada.
- Isso nunca me aconteceu. - Disse ela, desconcertada.
- Comigo já. -Rebateu a Mão, pomposa, com ar de quem sabe das coisas. - Naquela vez em que um dos seus amigos brilhantes aí de cima resolveu me ordenar esmurrar uma parede para descontar sua raiva.
- Eles devem achar que nós somos gladiadores. - Concordou a Outra Mão, que estava por ali, deitada, só observando a cena toda.
- Não sei... Não vou defender ninguém, pois não sou advogada nem ganho pra isso. Só quero minhas ideias de volta. - A Imaginação choramingava. A Caneta permanecia em silêncio, pois gostava de fazer o tipo "inanimada". O Papel, porém, não se fez de rogado.
- Eu costumo ouvir bastante. Mas acabo dizendo mais ainda. E, mesmo sendo tão falante, nunca fiquei sem ter o que dizer.
- Coisas diferentes, amigo. - A Caneta decidiu intervir. A verdade é que ela não suportava não opinar, por mais charme que isso lhe desse. Tinha que dar seu ponto, senão a conversa não teria graça. - Você fala sem parar. Mas quem é que te passa as ideias?
- Não é você, certo? - Alfinetou a Outra Mão. ainda deitada por ali, querendo apenas ver o circo pegar fogo.
- Eu não? - A Caneta soou ofendida. - Ora essa, de quem é a tinta que o Papel tão inocentemente usa para passar suas ideias?
- Por favor... - Responderam a Imaginação e a Outra Mão, em uníssono.
- Pessoal, sejamos francos. Quem realmente pensa nessa história toda é a Imaginação. - A Mão falou, em tom apaziguador. Mas, antes que pudesse ser cumprimentada pela maturidade, já deixou escapar sua verdadeira intenção. - Só os "pensadores" é que podem ficar de choramingos e evitar assim o trabalho.
- Meu Deus! - Exclamou o Papel.
- Vem você de novo com essa história de diretos iguais... - A Imaginação começava a se frustrar.
- Mas é verdade. Eu nunca tiro uma folga. Sempre trabalhando, levando a Caneta pra cá e pra lá. - A Mão seguia seu protesto.
- E o que diabos você está fazendo agora, criatura? - A Outra mão sorria, ou seja lá o que fazem as mãos quando estão alegres.
- Hum... é verdade... - Todos riram. Ou seja lá o que cada um deles costumava fazer quando alegre. E então, o silêncio, todos pensativos.
-E aquele seu amigo... - começou o Papel, tímido - Aquele que sempre leva o crédito?
- O Coração? - Retrucou a Imaginação. - Aquele lá não faz nada. Deu uma ou outra boa ideia e agora já é o Tolkien do corpo humano...
- Ahá! - O coração palpitou por ali. - Precisam de mim? - As mãos aplaudiram a entrada triunfal. A Caneta limitou-se a gemer de dor, cada palma lhe deixando mais e mais tonta. O Papel nada fez. Não que tivesse muita escolha mesmo... E a Imaginação apenas muxoxou.
- E então, qual é o caso? - O Coração perguntou, cheio de si.
- O caso é que não temos um caso. - Respondeu a Mão.
- Não é nada demais. - Grunhiu a Imaginação, contrariada.
- A "Excelentíssima" aí não consegue criar. - Alfinetou novamente a Outra Mão. E então o caos instalou-se, enquanto cada um tentava defender seus pontos. Uns de tinta, outros de vista.
- Todos tem uma noite ruim. - Argumentou a Imaginação.
- Eu não! - Retrucou o Papel.
- E eu, então? - Inflamou-se a Caneta. Figurativamente, é claro. As mãos, que nunca foram bem em debates, apelaram para o que sabiam fazer: bater. Esmurraram a mesa e o silêncio caiu como uma pedra sobre o local. Ouviu-se o crepitar da lareira e os pingos de chuva gerados pelo gramofone. Até que o Coração falou:
- Escreva sobre o que acabou de acontecer. - Sorriu, maroto. E todos permaneceram em silêncio, ponderando. A Imaginação abriu a boca, ou o que quer que seja que ela use para falar, para retrucar, mas percebeu a genialidade intrínseca da ideia. O Coração voltou ao seu trabalho. A Outra Mão deitou-se novamente, pensando "o cara é bom".
Meio a contragosto, a Imaginação mandou a Mão guiar a Caneta a escrever o que o Coração dissera. "Que droga, o cara é bom mesmo", pensou ela também. E a Caneta escreveu:
"O Papel estava em seu lugar. Um caderno ligeiramente gasto..."
shuahsua
ResponderExcluir*o* Ficou realmente bom e realmente uma ótima idéia...
Mimimi... /semidéiaspracomentárioson
Daqui a pouco faço um comentário da discussão do que comentar... Mas... até que combinaria com o post, não?
^^'