10 janeiro 2011

Título?

O Papel estava em seu lugar. Um caderno ligeiramente gasto, de páginas repletas de rugas. O ambiente era acolhedor. O Inverno fustigava as paragens lá fora, mas no interior da casa, especificamente naquela salinha, onde uma chama bruxuleante crepitava na lareira, sentia-se apenas um calor simpático. Na vitrola rodopiava um velho disco de sons da natureza, no momento reproduzindo uma pacata chuvinha de fim de tarde.

Tudo parecia perfeitamente normal naquele ambiente, cada um cumprindo a contento sua função. Tudo e todos. Exceto a Caneta. Parada sobre o Papel, imóvel, lá estava a caneta. Notória escritora, conhecida pela determinação com que começava uma história e não parava até tê-la terminado, era agora um suntuoso enfeite, empoleirada ereta sobre o Papel, a tinta plenamente disposta em sua ponta, porém sem nada produzir.
Mas é claro que a culpa não era da Caneta. Poucos sabiam, e mesmo estes fingiam não saber, mas a Caneta não tinha nada de genial. Era só um peão, trabalhando freneticamente na mão de um ser hierarquicamente mais importante. Literalmente.

Naquele instante, guiando a caneta, havia a Mão. Imponente, elegante, segurando a Caneta com maestria. Preparando-se para outro feito majestoso. Mas a Mão não era tão bem vista quanto a Caneta. Não, nunca lhe era dados créditos , mesmo os errôneos, tais como os endereçados a Caneta. A Mão era apenas mão de obra. Era um operário das grandes artes. Ela apenas seguia as ordens que a Imaginação lhe passava. Ou seguiria, caso houvessem ordens a seguir.
Mas aquela não era uma noite imaginativa para a Imaginação. Ela até esforçava-se, tentando sorver inspiração do mundinho onde agora estava. Mas nada parecia ocorrer-lher. Nenhuma ideia genial, Nem mesmo uma ideia simples que fosse. Não lhe vinha nada.

- Isso nunca me aconteceu. - Disse ela, desconcertada.
- Comigo já. -Rebateu a Mão, pomposa, com ar de quem sabe das coisas. - Naquela vez em que um dos seus amigos brilhantes aí de cima resolveu me ordenar esmurrar uma parede para descontar sua raiva.
- Eles devem achar que nós somos gladiadores. - Concordou a Outra Mão, que estava por ali, deitada, só observando a cena toda.
- Não sei... Não vou defender ninguém, pois não sou advogada nem ganho pra isso. Só quero minhas ideias de volta. - A Imaginação choramingava. A Caneta permanecia em silêncio, pois gostava de fazer o tipo "inanimada". O Papel, porém, não se fez de rogado.
- Eu costumo ouvir bastante. Mas acabo dizendo mais ainda. E, mesmo sendo tão falante, nunca fiquei sem ter o que dizer.
- Coisas diferentes, amigo. - A Caneta decidiu intervir. A verdade é que ela não suportava não opinar, por mais charme que isso lhe desse. Tinha que dar seu ponto, senão a conversa não teria graça. - Você fala sem parar. Mas quem é que te passa as ideias?
- Não é você, certo? - Alfinetou a Outra Mão. ainda deitada por ali, querendo apenas ver o circo pegar fogo.
- Eu não? - A Caneta soou ofendida. - Ora essa, de quem é a tinta que o Papel tão inocentemente usa para passar suas ideias?
- Por favor... - Responderam a Imaginação e a Outra Mão, em uníssono.
- Pessoal, sejamos francos. Quem realmente pensa nessa história toda é a Imaginação. - A Mão falou, em tom apaziguador. Mas, antes que pudesse ser cumprimentada pela maturidade, já deixou escapar sua verdadeira intenção. - Só os "pensadores" é que podem ficar de choramingos e evitar assim o trabalho.
- Meu Deus! - Exclamou o Papel.
- Vem você de novo com essa história de diretos iguais... - A Imaginação começava a se frustrar.
- Mas é verdade. Eu nunca tiro uma folga. Sempre trabalhando, levando a Caneta pra cá e pra lá. - A Mão seguia seu protesto.
- E o que diabos você está fazendo agora, criatura? - A Outra mão sorria, ou seja lá o que fazem as mãos quando estão alegres.
- Hum... é verdade... - Todos riram. Ou seja lá o que cada um deles costumava fazer quando alegre. E então, o silêncio, todos pensativos.
-E aquele seu amigo... - começou o Papel, tímido - Aquele que sempre leva o crédito?
- O Coração? - Retrucou a Imaginação. - Aquele lá não faz nada. Deu uma ou outra boa ideia e agora já é o Tolkien do corpo humano...
- Ahá! - O coração palpitou por ali. - Precisam de mim? - As mãos aplaudiram a entrada triunfal. A Caneta limitou-se a gemer de dor, cada palma lhe deixando mais e mais tonta. O Papel nada fez. Não que tivesse muita escolha mesmo... E a Imaginação apenas muxoxou.
- E então, qual é o caso? - O Coração perguntou, cheio de si.
- O caso é que não temos um caso. - Respondeu a Mão.
- Não é nada demais. - Grunhiu a Imaginação, contrariada.
- A "Excelentíssima" aí não consegue criar. - Alfinetou novamente a Outra Mão. E então o caos instalou-se, enquanto cada um tentava defender seus pontos. Uns de tinta, outros de vista.
- Todos tem uma noite ruim. - Argumentou a Imaginação.
- Eu não! - Retrucou o Papel.
- E eu, então? - Inflamou-se a Caneta. Figurativamente, é claro. As mãos, que nunca foram bem em debates, apelaram para o que sabiam fazer: bater. Esmurraram a mesa e o silêncio caiu como uma pedra sobre o local. Ouviu-se o crepitar da lareira e os pingos de chuva gerados pelo gramofone. Até que o Coração falou:
- Escreva sobre o que acabou de acontecer. - Sorriu, maroto. E todos permaneceram em silêncio, ponderando. A Imaginação abriu a boca, ou o que quer que seja que ela use para falar, para retrucar, mas percebeu a genialidade intrínseca da ideia. O Coração voltou ao seu trabalho. A Outra Mão deitou-se novamente, pensando "o cara é bom".
Meio a contragosto, a Imaginação mandou a Mão guiar a Caneta a escrever o que o Coração dissera. "Que droga, o cara é bom mesmo", pensou ela também. E a Caneta escreveu:
"O Papel estava em seu lugar. Um caderno ligeiramente gasto..."

Um comentário:

  1. shuahsua
    *o* Ficou realmente bom e realmente uma ótima idéia...
    Mimimi... /semidéiaspracomentárioson
    Daqui a pouco faço um comentário da discussão do que comentar... Mas... até que combinaria com o post, não?
    ^^'

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